By Éden António
A Economia Invisível: Além do que os Olhos Veem, Duas Lentes sobre o que Realmente Move o Mundo. Existe uma economia que não aparece nos relatórios do FMI, não é capturada pelos indicadores do PIB e escapa às lentes tradicionais da análise económica. É a economia das trocas invisíveis, dos afectos não monetarizados, dos saberes ancestrais, e das redes de solidariedade que sustentam comunidades inteiras enquanto o mundo discute índices de bolsa. Este texto explora esta economia invisível através de duas perspectivas radicalmente diferentes: a do pai da economia moderna, Adam Smith e a da visão Ubuntu da Massambala Media. Duas narrativas separadas por séculos, mas unidas pela busca de compreender o que realmente impulsiona a prosperidade humana.
PARTE 1: A MÃO INVISÍVEL DE ADAM SMITH – A ORDEM ESPONTÂNEA DO INTERESSE INDIVIDUAL
O Contexto do Iluminismo Escocês
Adam Smith publicou “A Riqueza das Nações” em 1776, num mundo em transformação radical. A Revolução Industrial começava a alterar irreversivelmente a relação do homem com o trabalho, a produção e o valor. Smith observava artesãos a dar lugar a fábricas, economias locais a tornarem-se nacionais, e o lucro a emergir como nova métrica de sucesso.
A Genialidade da Metáfora da “Mão Invisível”
A famosa metáfora smithiana não era sobre uma força mística, mas sobre um princípio de auto-organização, quando indivíduos perseguem seus interesses legítimos dentro de um mercado competitivo, eles são “conduzidos como que por uma mão invisível a promover um fim que não fazia parte das suas intenções” – o bem-estar colectivo.
Exemplo Prático no Século XVIII:
Um padeiro não acorda a pensar “vou alimentar a comunidade“. Ele pensa “vou ganhar a vida honradamente“. Ao produzir pão de qualidade a preço justo, ele inadvertidamente:
- Alimenta famílias
- Gera emprego para aprendizes
- Movimenta a economia local (compra farinha, lenha, etc.)
- Estimula concorrência saudável
A Economia Invisível Smithiana: O que Escapa aos Números
Smith entendia que por trás da economia visível (preços, salários, lucros) existia uma infraestrutura moral invisível essencial. No seu menos conhecido “Teoria dos Sentimentos Morais“, ele explorava como a simpatia (no sentido de capacidade de se colocar no lugar do outro) era o alicerce sem o qual nenhum mercado poderia funcionar durablemente.
Limitações da Lente Smithiana no Século XXI:
- Cega ao cuidado não remunerado: O trabalho doméstico, maioritariamente feminino, permanece invisível
- Ignora externalidades ambientais: A poluição não entra nas equações de custo-benefício
- Desvaloriza bens relacionais: Amizade, confiança, capital social não são quantificáveis
PARTE 2: A VISÃO UBUNTU DA MASSAMBALA MEDIA – A ECONOMIA DO CUIDADO VISÍVEL
O Contexto Pós-Colonial Africano
A Massambala Media emerge num contexto radicalmente diferente: África do século XXI, continente que viveu a violência da economia extractiva colonial e que busca agora caminhos económicos autênticos, enraizados na filosofia Ubuntu “Um ser humano é humano através dos outros seres humanos”.
A Economia como Teia de Relações
Enquanto Smith via indivíduos, a visão Ubuntu vê pessoas-em-relação. A economia não é um sistema de trocas entre entidades autónomas, mas um ecossistema de interdependência. O valor económico é inseparável do valor social, espiritual e comunitário.
Exemplo Prático no Musseque de Luanda:
Dona Maria vende legumes no mercado. Na óptica smithiana, ela é uma empreendedoravalor social individual. Na óptica Ubuntu:
- Ela é filha que cuida da mãe idosa (trabalho de cuidado não pago)
- É mentora de jovens vendedoras (transmissão de saber informal)
- É guardiã de sementes tradicionais (preservação de biodiversidade)
- É mediadora de conflitos na comunidade (manutenção do capital social)
A Economia Visível da Dignidade
Para a Massambala Media, tornar a economia visível significa:
- Reconhecer o trabalho de cuidado como produtivo
- Valorizar os saberes tradicionais como inovação
- Contabilizar o capital relacional como activo
- Celebrar a cooperação como motor de desenvolvimento
Metodologia Inbound Ubuntu em Acção:
A “Economia do Fardo” que descrevemos anteriormente é perfeita ilustração:
- Valor material: Roupa usada importada
- Valor relacional: Rede de mulheres que se apoiam
- Valor espiritual: Ressignificação da dignidade através do vestir
- Valor comunitário: Microcrédito solidário entre embaixadoras
PARTE 3: DIÁLOGO ENTRE AS DUAS VISÕES – O QUE SMITH PODERIA APRENDER COM UBUNTU
Pontos de Convergência Surpreendentes
Ambas as visões reconhecem que a economia possui uma dimensão invisível essencial:
- Smith via a coordenação espontânea como força invisível
- Ubuntu vê a interconexão ética como realidade fundamental
O que Smith Missing:
- A Economia do Cuidado:
- Smith: Foca no trabalho produtivo para o mercado
- Ubuntu: Inclui o trabalho de reprodução social como base da economia
- A Natureza do Valor:
- Smith: Valor determinado pela escassez e utilidade
- Ubuntu: Valor determinado pelo contributo para o bem-viver colectivo
- A Motivação Humana:
- Smith: Interesse próprio esclarecido
- Ubuntu: Interesse mutualmente constituído
Caso de Estudio: A Economia do Fardo Revisitada
Na visão smithiana, o comércio de roupa usada seria analisado por:
- Oferta e procura
- Vantagem comparativa
- Eficiência alocativa
Na visão Ubuntu, analisa-se também:
- Como fortalece redes de mulheres
- Como preserva recursos (economia circular)
- Como constrói autoestima colectiva
PARTE 4: PARA UMA NOVA METRICA DE PROSPERIDADE
Para Além do PIB: Indicadores com Alma
Se Smith vivesse hoje, talvez reconhecesse as limitações do PIB. A visão Ubuntu propõe indicadores como:
- Índice de Bem-Viver Comunitário:
- Densidade de redes de apoio mutual
- Vitalidade de economias locais
- Saúde dos ecossistemas relacionais
- Contabilidade do Cuidado:
- Horas de trabalho doméstico e comunitário
- Transmissão intergeracional de saberes
- Qualidade dos espaços de convivência
Implicações para Políticas Públicas:
Na óptica Smithiana moderna:
- Desregulamentação de mercados
- Protecção da propriedade privada
- Incentivos ao investimento estrangeiro
Na óptica Ubuntu:
- Investimento em economias comunitárias
- Valorização estatística do trabalho de cuidado
- Protecção de commons (bens comuns)
- Educação para interdependência
DUAS VISÕES, UM RECONHECIMENTO
Adam Smith e a Massambala Media, despite suas diferenças abissais, concordam num ponto fundamental, a economia real é sempre maior e mais complexa do que aquilo que conseguimos medir. A genialidade de Smith foi perceber que debaixo da economia visível dos preços opera uma lógica invisível de coordenação. A sabedoria Ubuntu lembra-nos que debaixo de toda a economia, visible ou invisible, opera uma realidade ainda mais profunda: a do cuidado mútuo como condição de possibilidade de qualquer prosperidade duradoura.
O Desafio do Nosso Tempo:
Não se trata de escolher entre Smith e Ubuntu, mas de reconhecer que precisamos de duas pernas para caminhar:
- A perna da eficiência e inovação (herança smithiana)
- A perna da equidade e sustentabilidade relacional (herança Ubuntu)
A verdadeira economia invisível que precisamos tornar visível não é uma mão misteriosa, mas sim o abraço consciente de que nosso bem-estar individual é inextricável do bem-estar colectivo. É essa economia, a economia do cuidado visível que pode finalmente levar-nos a uma prosperidade que mereça o nome de humana.
Epílogo: O que a Pandemia nos Ensina
A COVID-19 revelou brutalmente a economia invisível: quando o mercado formal parou, foram as redes informais de solidariedade, os trabalhos de cuidado, os saberes comunitários que sustentaram a vida. Talvez a maior lição seja que a economia mais essencial é também a mais invisível aos olhos do paradigma dominante. Torná-la visível é o primeiro passo para a valorizar e transformar.



