By Éden António
O Colosso Inquebrável – A Resistência da Excelencia de Paul Robeson O Homem que Era Um Continente
Em 1958, no auge do Macarthismo, um gigante de 1,90m, de voz que parecia emanar das entranhas da terra, ergueu-se perante o Comité de Atividades Antiamericanas. Ele não pedia clemência. Ele ditava termos. “Querem silenciar Paul Robeson?”, pareceu ecoar a sua postura. “Não silenciarão a África. Não silenciarão a luta pela humanidade.” Esta foi a essência de Paul Robeson (1898-1976): não apenas um homem, mas uma força da natureza, um arquipélago de talentos unidos pelo continente inabalável da sua consciência. Ele foi a incarnação viva do génio africano, canalizado através do atletismo, da arte, da intelectualidade e de uma coragem política tão profunda que se tornou uma arma.
1: O Alvorecer de Um Titã (1898-1919) – A Forja do Caráter
Paul Leroy Bustill Robeson nasceu a 9 de Abril de 1898, em Princeton, New Jersey. O seu pai, William Drew Robeson, era um escravizado que fugiu para a liberdade, tornou-se pastor e carregou consigo uma dignidade inquebrantável. A sua mãe, Maria Louisa Bustill, provinha de uma proeminente família abolicionista de Filadélfia. A tragédia atingiu cedo: a sua mãe morreu num incêndio quando Paul tinha seis anos, uma perda que o marcou profundamente.
Do seu pai, ele herdou mais do que a estatura. Herdou a ética férrea do trabalho e a convicção de que a educação era a chave para a libertação. William Robeson incutiu-lhe: “Não importa o que faças, Paul, fá-lo melhor do que qualquer outro homem.” Foi a base de toda a sua carreira multifacetada.

Em 1915, Robeson entrou na Universidade de Rutgers com uma bolsa de estudos. Ele não foi apenas o terceiro estudante negro na história da universidade; foi um sobrevivente. No seu primeiro treino de futebol americano, os colegas de equipa, todos brancos, partiram-lhe intencionalmente o nariz e arrancaram-lhe as unhas dos dedos numa tentativa de o expulsar. Robeson não desistiu. Ele contra-atacou com uma fúria silenciosa e disciplinada, tornando-se, dois anos depois, o primeiro atleta negro da equipa principal. Em 1917 e 1918, foi nomeado All-American, uma das honras mais altas do desporto universitário. Paralelamente, era membro da sociedade de honra Phi Beta Kappa e o orador da sua turma de formatura – uma combinação de excelência académica e atlética sem precedentes.
Esta fase forjou a sua dupla consciência: a capacidade de se destacar nas instituições brancas, dominando as suas regras, enquanto sentia na pele o seu racismo virulento. Era um treino para os palcos e arenas políticas do mundo.
2: O Renascimento do Artista e do Intelectual (1920-1939) – A Descoberta da Voz Global
Após formar-se em Direito na Universidade de Columbia, Robeson trabalhou brevemente num escritório de advocacia, mas abandonou a carreira quando uma secretária branca se recusou a datilografar as suas petições. Foi um ponto de viragem. O mundo do direito era pequeno demais para o seu génio.

A sua voz, descoberta quase por acaso, tornou-se o seu instrumento definitivo. Ele tornou-se uma estrela no palco e no ecrã. A sua atuação no musical “Show Boat” em 1928, onde cantou “Ol’ Man River”, transformou a canção de um lamento resignado num hino de profunda resistência. A sua interpretação era tão poderosa que mudou o significado da música para sempre.
Mas foi o seu mergulho nas culturas africanas e na luta global que definiu o seu caminho. Em viagens à União Soviética e pela Europa, foi tratado com uma dignidade que lhe era negada nos EUA. Em Moscovo, em 1934, ele declarou: “Aqui sou um ser humano pela primeira vez na minha vida. Não sinto a cor da minha pele.” Esta experiência radicalizou-o politicamente.
Ele aprendeu mais de 20 línguas para cantar spirituals e canções de protesto no seu idioma original – desde o iídiche ao mandarim, do russo ao iorubá. Ele não estava a “entreter”; estava a fazer uma declaração política sobre a universalidade da cultura e da luta humana. O seu álbum de 1945, “Ballad for Americans”, vendeu centenas de milhares de cópias, celebrando uma visão pluralista e inclusiva da América, em stark contraste com a segregação que imperava.
3: O Pilar da Resistência Política (1940-1950) – A Tempestade que se Avizinha
Os anos 40 marcaram o pico da sua fama e o início do seu confronto direto com o establishment americano. Durante a Segunda Guerra Mundial, vendeu milhões de dólares em bônus de guerra e cantou para as tropas aliadas. Mas, com o fim da guerra, a sua crítica tornou-se mais incisiva.
Em 1946, ele foi um dos fundadores da American Crusade Against Lynching, confrontando publicamente o Presidente Truman e exigindo uma legislação federal contra os linchamentos. A sua luta tornou-se intransigentemente internacionalista. Ele foi um defensor vocal da independência das nações africanas e um crítico feroz do colonialismo.

O ponto de não-retorno chegou em 1949. No Congresso Mundial da Paz em Paris, Robeson fez um discurso que ecoou em todo o mundo. Ele declarou: “É impensável que os negros americanos possam ir para uma guerra contra a União Soviética, uma nação que, numa geração, elevou os seus povos à dignidade humana total.”
A declaração foi distorcida pela imprensa americana como ele ter dito que “os negros não lutariam pela América”. O escândalo foi instantâneo. Os seus concertos foram cancelados, os seus discos foram retirados das lojas, e ele foi colocado na lista negra. O colosso estava a ser isolado.
4: O Exílio e a Inquebrável Dignidade (1950-1963) – O Preço da Coragem
Em 1950, o governo dos EUA revogou o seu passaporte, confinando-o ao país durante oito anos. Foi uma tentativa de silenciá-lo, de cortar as suas ligações internacionais e de quebrar o seu espírito. Foi o período mais sombrio da sua vida. A sua saúde deteriorou-se, e ele enfrentou um ostracismo quase total.
Mas Robeson não se dobrou. Em 1956, perante o Comité de Atividades Antiamericanas, ele entregou uma das mais poderosas declarações de desobediência civil da história americana. Quando questionado sobre o porquê de não ter ficado na Rússia, respondeu: “Porque o meu pai era um escravo, e o meu povo morreu para construir este país, e eu vou ficar aqui e ter uma parte dele, tal como você.”

Recusando-se a assinar uma declaração de que não era comunista, ele invocou a Quinta Emenda de forma estratégica e desafiante. A sua audição não foi um interrogatório; foi um julgamento contra os seus interrogadores, uma aula pública de dignidade. “A questão é se os cidadãos americanos, independentemente das suas crenças políticas ou simpatias, podem desfrutar de direitos constitucionais.”
Em 1958, com a decisão do Supremo Tribunal no caso Kent v. Dulles, o seu passaporte foi devolvido. Ele partiu imediatamente para um exílio autoimposto, principalmente no Reino Unido e na União Soviética, tentando escapar à pressão constante.
5: O Legado Eterno (1963-1976 e Para Além) – A Semente que Nunca Morre
Paul Robeson regressou aos EUA em 1963, doente e esgotado. Viveu os seus últimos anos em relativo isolamento em Filadélfia, com a sua irmã, falecendo a 23 de Janeiro de 1976.
Mas a sua semente já tinha germinado. O seu internacionalismo e a sua coragem inabalável inspiraram diretamente uma nova geração de ativistas, desde Malcolm X, que via nele um pioneiro do nacionalismo negro e do pan-africanismo, até Harry Belafonte e os líderes do Movimento dos Direitos Civis.

Robeson foi o protótipo do artista-intelectual-ativista completo. Ele demonstrou que o sucesso individual, sem consciência social, é uma vitória oca. Ele mostrou que a cultura não é um passatempo, mas um campo de batalha onde as narrativas de opressão e libertação são forjadas.
A sua vida é um testamento para todos os que carregam o “Clarão” do génio. Ele ensina que:
- A Excelência é uma Arma: Domine o seu campo com uma perícia inquestionável, para que as suas críticas não possam ser descartadas como amargura.
- A Consciência é um Dever: O seu talento é um dom para a sua comunidade, não apenas para a sua glória pessoal.
- A Coragem é Solitária: Estar à frente do seu tempo significa, muitas vezes, estar sozinho. A verdadeira grandeza está em suportar esse isolamento sem ceder.
- A Sua Pátria é a Humanidade: A luta pela liberdade não conhece fronteiras.
Paul Robeson não foi apenas um herdeiro dos génios africanos. Ele foi um dos seus arquitetos mais brilhantes. Ele não cantou apenas sobre a liberdade; ele foi liberdade, em forma humana, uma força titânica que, mesmo quando confinada, nunca pôde ser contida. A sua voz, o seu espírito, o seu legado – estes são inquebráveis.
Ele era o rio. E o rio, ele continuava.